As espirradeiras balançam suas flores no vento leste, os periquitos cantam na gaiola, amanhece um dia de sol. Mas houve um tempo em que eu era um panda solitário e acordar significava apenas sair do refúgio do sono.
Eu era um panda e não encontrava meu par, ou só encontrava pares que, de outra espécie, não me serviam. Lembrei-me disso de repente, ao encontrar um recorte dobrado num livro, foto de jornal londrino, que Ziraldo me mandou no ano que Chi-Chi viajou de Londres para Moscou para o fim de se encontrar com An-An, o único outro panda em cativeiro no mundo. Tragédia dos pequenos ursos brancos de olhar triste para sempre mergulhado na olheira preta do pelo. Porque embora sendo os únicos dois de que se tem notícia e posse, não se gostaram, não se quiseram, e foram cada qual devolvido à própria solidão, no falso conforto do zoológico.
Eu fui panda ao primeiro olhar. Assim que vi o bicho e soube seu nome percebi que, se tribo havia para mim, era aquela. Dispersos, quase extintos, os últimos representantes da raça graciosa vivem na Mongólia, em floresta de bambu, alimentando-se de brotos vegetais. São animais delicados, delicadeza de solidão.
Naquele tempo eu também vivia em espessa floresta que me escondia o resto do mundo. E tinha medo, porque nem sempre a floresta é um lugar bom de se ficar. E me alimentava de forma estranha, sopas tomadas num canto, com o prato quente na mão, sem a formalidade da mesa que evidenciasse ainda mais a ausência de companhia.
Eu era um panda solitário, e andava em roda no zoológico por mim mesma construído, presa, embora sem visitantes. E lamentava a minha sorte, certa de que não escaparia.
Nem me dei conta da queda progressiva do pelo, quase não percebi quando perdi as olheiras pretas. Não foi como nos contos de fadas, assim, de repente, só porque bebi no copinho de ouro da princesa. Foi aos poucos, lentamente, na medida em que a floresta se fazia menos espessa ao meu redor, permitindo-me ver.
E quando afinal deixei de ser panda, nem me espantei, como se a metamorfose fosse o grande direito dos solitários. E quase esqueci a condição primeira.
Lembrei-me agora por causa do recorte e senti uma pontada de traição por ter abandonado com tanto prazer os da minha espécie. Mas era ruim ser panda, doía muito excluir-se da festa da vida. As pessoas me olhavam e me achavam graciosa, gostavam de mim, algumas gostavam de verdade. Mas havia sempre o momento em que cada qual voltava para a sua casa e o seu par, deixando-me sozinha sem remorsos, e eu me sentia então um ser à parte.
Cansei, ah cansei daquela fragilidade de graveto, daquela delicadeza que dava até pena aos outros me atacar. Cansei do meu regime de brotos de bambu. Quero a voracidade de quem está vivo, a dentada no semelhante. Quero andar em frente, sem cercas, e ser um, em meio a semelhantes.
Os pandas que me perdoem, saí da roda. Ou, pelo menos, se não deixei completamente de ser panda, porque da origem alguma coisa sempre fica, deixei, isso sim, de ser solitária. Sou, digamos, um panda acompanhado. E isso muda tudo. Dois pandas já fazem multidão. E brincando, buscando-se, não andam em círculos.
sei que a metamorfose parece duvidosa, mas enquanto alguns pandas enovelados se recusam a acordar temerosos de que o dia lhes traga mais uma vez o andar concêntrico dos que não encontram saída, outros começam a perder o pelo e se preparam para visualizar o companheiro no horizonte. Porque achar outro panda pode ser fácil.
Difícil é sair da floresta.
Ganhei este belo texto para reflexão da Ana Beu Manzano
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