segunda-feira, 30 de abril de 2012

Visão de Clarice Lispector - Drummond


Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.
Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.
Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.
O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.
Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.
O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.
De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.
Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.
Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia… saberemos amar Clarice.

Aparição Amorosa - Drummond

"Doce fantasma, por que me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?"


Drummond - Aparição Amorosa

Aparição Amorosa - Drummond

"Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola."

Drummond - Aparição Amorosa
Foto :Patricio Suarez

Alcance

"No manto azul marinho
bordado de estrelas
eu bordo você
ao alcance da minha boca "

Martha Galrão


Memória - Drummond

"Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão."
Drummond

O olho do gato me olha ,a chuva me molha e o avião acima não rima.
Gal Oppido

Pulsão de Vida

Sabe aquela máxima do copo meio cheio e meio vazio ?
Pois bem, ouvi este termo "pulsão de vida" ontem e não me esqueci...
Um tailandes que passou pelo tsunami, perdeu mulher e filhos, tentou sua recuperação de vida no Japão.
Eis que novamente, passa por um desastre da natureza : o terremoto.
Ao dar entrevista a jornalista pergunta:
- O Sr não acha que é muito azar ?
- Azar ? Como se Deus me concedeu a vida duas vezes ? Sou um sobrevivente...quer sorte maior que essa ?
É impressionante o olhar que cada um pode dar sobre os acontecimentos da vida...

domingo, 29 de abril de 2012


Eterno ...terno

"O amor dura enquanto é TERNO."
Frei Beto numa celebração de casamento.


Uma inversão bem interessante...

Mortes Sucessivas - Adelia Prado


Pois é....lembrei de vc ao ler este poema da Adelia Prado.
Sem melancolia mas com um certa reflexão...você não tem idéia de como sua perda mexeu comigo, mexeu nas minhas crenças, na minha maneira de viver...
Não de forma ruim, ao contrário, me deu mais sede ainda de vida, aproximei-me mais da mamãe, o meu , seu avesso, e aprendi a olha-la de forma mais terna,menos exigente....e meu olhar para mundo mudou...mudou na direção...a velocidade tem sido lenta mas profunda.

Segue Adelia

"As mortes sucessivas

Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintal onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu, me consolei mais lento.
Tinha uma perfuração recém-achada:
meus seios conformavam dois montículos
e eu fiquei muito nua,
cruzando os braços sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu, nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza.
Reproduzi o encolhido do seu corpo
em seu último sono e repeti as palavras
que ele disse quando toquei seus pés:
‘deixa, tá bom assim’.
Quem me consolará desta lembrança?
Meus seios se cumpriram
e as moitas onde existo
são pura sarça ardente de memória."

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Verossímil - Adelia Prado

"Antigamente, em maio, eu virava anjo.
A mãe me punha o vestido, as asas,
me encalcava a coroa na cabeça e encomendava:
‘canta alto, espevita as palavras bem’.
Eu levantava voo rua acima."

Adélia Prado, em “Bagagem”

A arte da imaginação, do sonho , do bem viver...

O Vestido - Adelia Prado

"No armário do meu quarto escondo de tempo e traça
meu vestido estampado em fundo preto.
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas
à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, e volatiliza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda."

Adélia Prado, em “Bagagem”
Foto :Deborah Paauwe

Vestido que guarda memória, que mantem cravado o cheiro de um momento...que leva longe, ou bem perto da minha alma!

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Momento - Adelia Prado

Enquanto eu fiquei alegre, permaneceram
um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio,
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,
constituindo o mundo pra mim, anteparo
para o que foi um acometimento:
súbito é bom ter um corpo pra rir
e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo
alegre do que triste. Melhor é ser.

 
Adélia Prado, em “Bagagem”

Fome - Vc tem fome de que ?

Uma vez li esta frase da Adelia Prado : 
"Não quero faca, nem queijo. Quero a fome!"


Fome...
E me dei conta dessa mola propulsora...
Oscar Niemeyer tem fome...continua com sua veia criativa , produzindo aos 104 anos!
Roberto Marinho aos 60 anos cria a Rede Globo.
Meu pai saia da UTI e no dia seguinte ia ao Clube receber seus "amigos/clientes".E não poupava esforços para ver as filhas...sem ar, pegava seu carro e vinha...quase 1.000 km!
Fome...
Tem gente com faca na não e não corta nada...sem ação, sem movimento. 
Falta fome!
Tem gente com queijo a frente...e nada faz...
Falta fome !
Deus, me mantenha sempre com fome, com essa voraz de vida!

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Mãos dadas - Drummond


Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Maneira de bem sonhar


"Sonhar é encontrarmo-nos. 
Vai ser o Colombo da tua alma. 
Vais buscar as suas paisagens. 
Cuida bem pois em que o teu rumo seja certo e não possam errar os instrumentos."


Fernando Pessoa

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Ato Gratuito - Clarice Lispector


Muitas vezes o que me salvou foi improvisar um ato gratuito. Ato gratuito, se tem
causas, são desconhecidas. E se tem conseqüências, são imprevisíveis.

O ato gratuito é o oposto da luta pela vida e na vida. Ele é o oposto da nossa corrida pelo dinheiro, pelo
trabalho, pelo amor, pelos prazeres, pelos táxis e ônibus, pela nossa vida diária enfim - que esta é toda paga, istoé, tem o seu preço.

Uma tarde dessas, de céu puramente azul e pequenas nuvens branquíssimas, estava eu escrevendo a máquina - quando alguma coisa em mim aconteceu.

Era o profundo cansaço da luta.

E percebi que estava sedenta. Uma sede de liberdade me acordara. Eu estava simplesmente exausta de morar num apartamento. Estava exausta de tirar idéias de mim mesma. Estava exausta do barulho da máquina de escrever. Então a sede estranha e profunda me apareceu. Eu precisava - precisava com urgência - de um ato de liberdade: do ato que é por si só. Um ato que manifestasse fora de mim o que eu secretamente era. E necessitava de um ato pelo qual eu não precisava pagar. Não digo pagar com dinheiro mas sim, de um modo mais amplo,pagar o alto preço que custa viver.

Então minha própria sede guiou-me. Eram 2 horas da tarde de verão. Interrompi meu trabalho, mudei rapidamente de roupa, desci, tomei um táxi que passava e disse ao chofer: "Vamos ao Jardim Botânico." "Que rua?", perguntou ele. "O senhor não está entendendo", expliquei-lhe; "não quero ir ao bairro e sim ao Jardim do
bairro." Não sei por que olhou-me um instante com atenção.

Deixei abertas as vidraças do carro, que corria muito, e eu já começara minha liberdade deixando que um vento fortíssimo me desalinhasse os cabelos e me batesse no rosto grato, de olhos entrefechados de felicidade.

Eu ia ao Jardim Botânico para quê? Só pra olhar. Só para ver. Só para sentir. Só para viver.

Saltei do táxi e atravessei os largos portões. A sombra logo me acolheu. Fiquei parada. Lá a vida verde era larga. Eu não via ali nenhuma avareza: tudo se dava por inteiro ao vento, ao ar, à vida, tudo ser erguia em direção ao céu. E mais: dava também o seu mistério.

O mistério rodeava. Olhei arbustos frágeis recém-plantados. Olhei uma árvore de tronco nodoso e escuro, tão largo que me seria impossível abraçá-lo. Por dentro dessa madeira de rocha, através de raízes pesadas e duras como garras - como é que corria a seiva, essa coisa quase intangível e que é vida? Havia seiva em tudo como há sangue em nosso corpo.

De propósito não vou descrever o que vi: cada pessoa tem que descobrir sozinha. Apenas lembrarei que havia sombras oscilantes, secretas. De passagem falarei de leve na liberdade dos pássaros. E na minha liberdade. Mas é só. O resto era o verde úmido subindo em mim pelas minhas raízes incógnitas. Eu andava, andava. Às vezes parava. Já me afastara muito do portão de entrada, não o via mais, pois entrara em tantas alamedas. Eu sentia um medo bom - como um estremecimento apenas perceptível de alma - um medo bom de talvez estar perdida e nunca mais, porém nunca mais! achar a porta de saída.

Havia naquela alameda um chafariz de onde a água corria sem parar. Era uma cara de pedra e de sua boca jorrava a água. Bebi. Molhe-me toda. Sem me incomodar: esse exagero estava de acordo com a abundância do Jardim.

O chão estava às vezes coberto de bolinhas de aroeira, daquelas que caem em abundância nas calçadas de nossas infâncias e que pisamos, não sei por que, com enorme prazer. Repeti então o esmagamento das bolinhas e de novo senti o misterioso gosto bom.

Estava um cansaço benfazejo, era hora de voltar, o sol já estava mais fraco.

Voltarei num dia de muita chuva - só para ver o gotejante jardim submerso.

Nota : peço licença para pedir à pessoa que tão bondosamente traduz meus textos em braile para cegos que não traduza este. Não quero ferir olhos que não veem.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Parece afeto, parece amor...

Parece laço, parece afeto, parece amor...
Parece...
Mas quando você se dá conta, a conta não fecha...
O preço é tão alto!
Vem com juros e correções monetárias...
Não existe moeda que consiga pagar tamanha dívida!
Melhor declarar  moratória mesmo...
Mas como ?
Parece laço, parece afeto, parece amor...

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Qual o tamanho da sua fome ?

Cena 1:
- Mas é muito pouco...
- Para uns é o suficiente.
- Migalhas ?
- Para ele o pão inteiro.
- Como ? Mas vejo migalhas...
- Ele vê pão inteiro.
- Mas mas mas eu continuo vendo migalhas...
- Para ele o suficiente.


Cena 2:
Anna Murdoch termina casamento de 32 ano e declara :
- Não imaginava que nosso casamento ia mal...
32 anos...e ela nem percebeu..17 dias ele estava casado com outra.


Para uns, um lápis serve...outros precisam do estojo inteiro.
Tudo depende do tamanho da ...fome que cada um tem de vida!

domingo, 1 de abril de 2012

Os solitários pandas - Marina Colasanti

As espirradeiras balançam suas flores no vento leste, os periquitos cantam na gaiola, amanhece um dia de sol. Mas houve um tempo em que eu era um panda solitário e acordar significava apenas sair do refúgio do sono.
Eu era um panda e não encontrava meu par, ou só encontrava pares que, de outra espécie, não me serviam. Lembrei-me disso de repente, ao encontrar um recorte dobrado num livro, foto de jornal londrino, que Ziraldo me mandou no ano que Chi-Chi viajou de Londres para Moscou para o fim de se encontrar com An-An, o único outro panda em cativeiro no mundo. Tragédia dos pequenos ursos brancos de olhar triste para sempre mergulhado na olheira preta do pelo. Porque embora sendo os únicos dois de que se tem notícia e posse, não se gostaram, não se quiseram, e foram cada qual devolvido à própria solidão, no falso conforto do zoológico.
Eu fui panda ao primeiro olhar. Assim que vi o bicho e soube seu nome percebi que, se tribo havia para mim, era aquela. Dispersos, quase extintos, os últimos representantes da raça graciosa vivem na Mongólia, em floresta de bambu, alimentando-se de brotos vegetais. São animais delicados, delicadeza de solidão.
Naquele tempo eu também vivia em espessa floresta que me escondia o resto do mundo. E tinha medo, porque nem sempre a floresta é um lugar bom de se ficar. E me alimentava de forma estranha, sopas tomadas num canto, com o prato quente na mão, sem a formalidade da mesa que evidenciasse ainda mais a ausência de companhia.
Eu era um panda solitário, e andava em roda no zoológico por mim mesma construído, presa, embora sem visitantes. E lamentava a minha sorte, certa de que não escaparia.
Nem me dei conta da queda progressiva do pelo, quase não percebi quando perdi as olheiras pretas. Não foi como nos contos de fadas, assim, de repente, só porque bebi no copinho de ouro da princesa. Foi aos poucos, lentamente, na medida em que a floresta se fazia menos espessa ao meu redor, permitindo-me ver.
E quando afinal deixei de ser panda, nem me espantei, como se a metamorfose fosse o grande direito dos solitários. E quase esqueci a condição primeira.
Lembrei-me agora por causa do recorte e senti uma pontada de traição por ter abandonado com tanto prazer os da minha espécie. Mas era ruim ser panda, doía muito excluir-se da festa da vida. As pessoas me olhavam e me achavam graciosa, gostavam de mim, algumas gostavam de verdade. Mas havia sempre o momento em que cada qual voltava para a sua casa e o seu par, deixando-me sozinha sem remorsos, e eu me sentia então um ser à parte.
Cansei, ah cansei daquela fragilidade de graveto, daquela delicadeza que dava até pena aos outros me atacar. Cansei do meu regime de brotos de bambu. Quero a voracidade de quem está vivo, a dentada no semelhante. Quero andar em frente, sem cercas, e ser um, em meio a semelhantes.
Os pandas que me perdoem, saí da roda. Ou, pelo menos, se não deixei completamente de ser panda, porque da origem alguma coisa sempre fica, deixei, isso sim, de ser solitária. Sou, digamos, um panda acompanhado. E isso muda tudo. Dois pandas já fazem multidão. E brincando, buscando-se, não andam em círculos.
sei que a metamorfose parece duvidosa, mas enquanto alguns pandas enovelados se recusam a acordar temerosos de que o dia lhes traga mais uma vez o andar concêntrico dos que não encontram saída, outros começam a perder o pelo e se preparam para visualizar o companheiro no horizonte. Porque achar outro panda pode ser fácil. 

Difícil é sair da floresta.


Ganhei este belo texto para reflexão da Ana Beu Manzano